30 de março de 2011

DEPOIS DO TSUNAMI...


Quem de nós já não sofreu as conseqüências deixadas por uma catástrofe? A dor de uma separação, o enfrentamento de uma grave enfermidade, a morte de um ente querido, a partida de um filho, a perda de um emprego ou de um grande amor. Ou ainda pessoas que nos decepcionam e sonhos que não realizamos. De repente, as coisas já não são as mesmas, sentimo-nos perdidos, confusos e desamparados.
Quem já não teve que juntar os cacos, recolher o que sobrou entre os escombros, ou revisitar lugares antes familiares e agora devastados?

E depois, passado o susto, sabemos que precisamos levantar, reunir forças e continuar. A sensação é de impotência. Parece que não conseguiremos seguir em frente. O vazio e a solidão podem ser assustadores. Nos faltam o chão, as referências, a direção e o ânimo para prosseguir.

Um amigo me disse que enfrenta, no momento, a passagem de um tsunami. No seu caso, não houve de fato um terremoto nem ondas gigantescas arrasando o lugar onde vive, mas mudanças significativas em sua vida que o levaram a ter que recomeçar. Sua dor é emocional. Ele sabe que precisará seguir adiante e isso implicará em perdas e renúncias.

Desde o início é assim. O nascimento é a primeira perda de todo ser humano. Nascer é deixar o abrigo do útero materno para, nos primeiros anos de existência, gradativamente, constituir-se a si mesmo como um “eu”, um indivíduo autônomo. Parir também é perder, a mãe deve saber separar-se, "deixar ir". E assim, por toda a vida, passamos por mudanças inevitáveis e perdas necessárias ao crescimento e à evolução humana. Somente assim podemos realizar grandes conquistas, aprender com as próprias experiências e nos tornarmos plenos e livres.

Apesar dos medos e dúvidas e das tantas sensações de abandono que nos acompanham nos momentos de catástrofes emocionais, o que nos conforta é saber que tudo isso vai passar, que o sol voltará a brilhar, que há mãos amigas estendidas ao longo do caminho e que, após os tsunamis, podemos sim recomeçar.

21 de março de 2011

DES COMPROMETIDA

"Comprometida" é o novo livro de Elizabeth Gilbert, a mesma autora de "Comer, Rezar, Amar". Li no mês passado e estou com algumas reflexões na cabeça. A verdadeira história do casamento não é tão bonita quanto nossa sociedade nos ensina, nem tão sagrada quanto parece. E os finais felizes? Acho que só existem mesmo nas novelas. 
O casamento tem sofrido inúmeras mudanças ao longo do tempo. Com o passar dos séculos, os significados associados à união conjugal passaram por transformações que tornam cada vez mais difícil encontrar para esse relacionamento uma definição simples ou exata.
O conceito mais comum de casamento como “união sagrada entre um homem e uma mulher”, sustentado pelos princípios judaico-cristãos da sociedade ocidental é, atualmente, uma definição redutora que não nos serve mais, porque já convivemos com outras possibilidades, como a união entre dois homens ou entre duas mulheres, e porque a religião não exerce sobre o casamento o mesmo poder que exerceu no passado.  
A história nos aponta que, durante cerca de dez séculos, nem mesmo o cristianismo considerou santificado o matrimônio. Pelo contrário, o casamento era uma questão de interesses, propriedades, heranças e poder econômico. Era uma convenção civil que gerenciava a ordem social no início da história européia. Na Idade Média, era um modo seguro de passar para as gerações seguintes a riqueza acumulada pela família.
Os primeiros padres consideravam o casamento um costume mundano que nada tinha a ver com religião. O apóstolo Paulo, na carta aos Coríntios, escreve que “bom seria que o homem não tocasse em mulher”, instruindo os solteiros a não se casarem e aos viúvos a não se unirem a novas parceiras. “Mas se não puderem se conter, que se casem, pois é melhor casar do que pecar”, dizia ele, referindo-se ao ato sexual somente aceitável dentro da união matrimonial.
Somente no século XIII, a Igreja passou a se envolver no casamento, pois precisava administrar o poder do rei e suas alianças políticas. Os padres passaram a controlar as uniões e proibir os divórcios. As mulheres perdiam a existência civil individual quando se casavam. A união entre brancos e negros era ilegal, assim como não se permitiam uniões entre pessoas de diferentes classes sociais. Percebe-se, portanto, que o casamento foi, por muito tempo, e talvez ainda seja na contemporaneidade, uma forma de se manter a estabilidade social, em conformidade com o patriarcado, o poder das elites e as diferenças de classes.
Os primeiros cristãos europeus se casavam em casa, com roupas comuns em cerimônias que duravam poucos instantes. Os casamentos românticos realizados na igreja, com vestido de noiva branco e flores, que hoje consideramos tradicionais, passaram a acontecer no século XIX, quando a rainha Vitória lançou a moda.
Naquela época, a Revolução Industrial e as democracias liberais na Europa e nas Américas já provocavam mudanças econômicas e sociais que impulsionavam a busca pela liberdade individual e pela privacidade, valor até então desconhecido. Os casamentos por interesse e arranjados passaram a ser substituídos por uniões baseadas em escolhas pessoais e amor, assim como o direito ao divórcio foi sendo gradativamente conquistado.
Com os casamentos realizados por amor, verificou-se um enfraquecimento da instituição quanto a sua durabilidade, pois agora tudo depende das razões do coração e não mais dos acordos baseados nos clãs e patrimônios. A idéia de união sagrada foi perdendo sua força. Não hesitamos mais em pular fora, se o barco estiver afundando. Pensando bem, é justamente nos processos de separação que percebemos que o casamento é muito mais uma questão de lei e não de religião, pois o que se discute, no final, é com quem ficam as propriedades e a guarda dos filhos. Voltar atrás quanto ao juramento feito diante do padre de estarmos juntos “até que a morte nos separe” ou nos mantermos fiéis e cuidadosos “na saúde e na doença” não é necessariamente situação que nos pese na consciência por muito tempo.
Talvez o divórcio seja o preço que, às vezes, pagamos por selarmos o amor com um contrato legal. Se escolhemos parceiros com base no amor, necessariamente assinamos um contrato muito arriscado, pois não se trata de manter interesses econômicos, ou de preservar o patrimônio familiar, ou de manter unida a família em nome de valores sagrados. Trata-se de manter ardente a mesma chama que nos motivou à união, pois acabando o amor acaba o casamento. E isso dependerá do quanto estamos preparados para os desafios impostos pela convivência. O casamento transforma o amor em um jogo. É preciso saber jogar.

17 de março de 2011

Criminalização das Lideranças Guarani Kaiowá no MS

Este texto foi publicado por Israel Sassa, em http://uniaocampocidadeefloresta.wordpress.com, sobre encontro de indígenas no MS, que ocorreu entre os dias 11 e 13 de março, no qual discutiram a situação de grupos que estão acampados à beira da estrada, por não terem demarcadas suas terras, e de líderes que estão presos por terem lutado por seus direitos. Ou seja: os criminosos são eles, os índios? Enquanto isso, assistimos a impunidade de assassinos de lideranças indígenas, como ocorreu no caso Marcos Veron.

“Quando nós indígenas nos organizamos e retomamos nossas terras, eles [o Estado] nos chamam de formadores de quadrilhas, ladrões, invasores, bandos e processam a gente e nos prendem, nos torturam, nos massacram e nos matam”, palavras de Liderança Guarani Kaiowá durante encontro Aty Guassu, realizado no último fim de semana, dias 11 a 13 de março de 2011, na aldeia Takuara, em Juti, MS.


As lideranças reunidas na celebração do Aty Guassu manifestaram preocupação com o processo de criminalização que vêm sofrendo desde as primeiras retomadas.


No Mato Grosso do Sul, indígenas acampam nas margens das estradas e rodovias à espera de que o governo demarque e homologue suas terras.


Um desses grupos, a comunidade Laranjeira Nhanderu, acampado há quase dois anos na BR 163, município de Rio Brilhante, foi despejado do local a pedido da DNT (consórcio rodoviário). Antes de acamparem na margem da rodovia, foram despejados pela justiça federal de seu Tekoha. “Para onde eles vão, aquelas famílias, que já foram despejadas e encontraram na margem da rodovia uma opção para se organizarem e morarem?”, indaga uma das lideranças.


Quando os pistoleiros não dão conta de calar e conter as lideranças indígenas é aí que o Estado brasileiro entra na questão, não para defender e proteger os interesses dos povos indígenas como consta na Constituição Federal, mas para criminalizá-los, acusando-os de formação de quadrilha, invasão de propriedades, e logo vem as prisões. No Estado do Mato Grosso do Sul, hoje estão presos 148 lideranças indígenas.


Não existe nenhum conflito causado pelos indígenas, a situação de guerra que se estabelece por todo o país é ocasionada pela não demarcação de suas terras, ou seja, quem provoca a situação de conflito é o Estado brasileiro que, além de não cumprir com o estabelecido nas leis nacionais e internacionais, ainda se omite na hora de penalizar os invasores e assassinos de índios, fazendo da impunidade mais uma arma contra os povos indígenas.

14 de março de 2011

AMOR MAIOR

Ah me lembrei que assisti ao show do Jota Quest, na MTV, no último sábado. A canção diz que "é preciso amar direito", desejar e fazer tudo para acontecer um "amor maior". Talvez essa seja uma resposta para a impotência que sentimos diante das dores do mundo. 

Fernanda Montenegro, em uma entrevista, quando questionada se é uma mulher feliz, respondeu que acredita ser impossível ser feliz no Brasil, onde há tantas infelicidades. Sinto-me assim, às vezes, não somente pela realidade social de meu país, mas pela decadência moral que parece ter contaminado a toda humanidade. 

Talvez o amor maior possa dar conta disso. Talvez os encontros entre pessoas que se amam, a sinceridade de um beijo, o calor de um abraço, o aconchego de palavras solidárias, a esperança transmitida pela mão amiga, enfim, talvez essas sejam as únicas possibilidades de não sermos consumidos pela sensação de impotência e pela passividade diante dos sofrimentos alheios. Também é o que pode nos salvar quando somos nós que sofremos.

DIANTE DA DOR DOS OUTROS, A IMPOTÊNCIA


Que fazer com as informações que nos chegam pela TV sobre o terremoto e o tsunami no Japão na última semana? Que fazer diante das imagens de um sofrimento distante?

Muitas vezes temos dificuldades de lidar com os sofrimentos de pessoas que nos são próximas. E isso é frustrante. Mas quando aqueles que sofrem estão do outro lado do mundo, o sentimento de impotência pode ser ainda maior.
Por mais que essas situações possam despertar sentimentos de identificação e solidariedade, não é tão fácil pensar sobre suas provações, entender como se sentem.

Penso nas palavras de Susan Sontag no livro Diante da dor dos outros (2003), que reflete sobre as atrocidades das guerras e sobre como as imagens transmitidas pela mídia podem, por um lado, nos sensibilizar e, por outro, nos anestesiar, como se fossemos levados a um estágio de torpor, a um embotamento de sentimentos frente às dores do mundo, que se tornaram tão corriqueiras e banalizadas que mais parecem um espetáculo e não realidade de fato. “É como se ela (a realidade) de fato não existisse, como se o sofrimento estivesse sendo exagerado. Consumidores de notícias podem se tornar insensíveis ao sofrimento alheio”, escreve Susan.

Algumas pessoas farão qualquer coisa a fim de não se comover frente às imagens e sons que invadem sua sala de estar. Podem até mesmo mudar de canal. Ou podem sentir que, afinal, “não há nada que se possa fazer” e que “a vida continua”. Mas nem sempre essa posição se deve à falta de solidariedade ou ao individualismo que se tornaram comuns nas sociedades modernas. O fato é que somos mesmo impotentes e admitir isso também nos faz sofrer. Susan aponta que até mesmo o sentimento de compaixão que é despertado nessas ocasiões é uma emoção instável. Quando não é traduzida em ações, pode levar a uma apatia e uma anestesia moral ou emocional.

Imagens de sofrimentos podem nos enrijecer, nos tornar mais insensíveis, pois já nos acostumamos a contemplar as dores alheias como fatos corriqueiros. A violência, os crimes passionais, os assaltos, a fome, a pobreza, as guerras, a agressividade extrema e o estresse das grandes cidades fazem parte da vida que levamos. Assim como as ameaças ao planeta conseqüentes de um desenvolvimento não sustentável ao qual chamamos progresso. Aprendemos a nos tornar passivos diante de tudo isso.

O que fazer então, quando se trata de uma catástrofe que não depende da ação humana? O Japão, com toda a tecnologia e conhecimento desenvolvidos, não pôde prever uma catástrofe como esta simplesmente porque era imprevisível. A humanidade, por mais avanços científicos que tenha conquistado, nada pode fazer para evitar certos fenômenos naturais. Nesses momentos, mais do que nunca, nos damos conta de nossa fraqueza. Reconhecemos a existência do inevitável e do incorrigível. Admitimos que não controlamos tudo. E, neste caso, seria até melhor não estarmos comovidos.

8 de março de 2011

POR QUE O DIA 8 DE MARÇO?

Vale a pena lembrar, como registrou hoje a psicóloga Kátia Horpaczky em seu blog Roda da Vida, que o dia 8 de março não foi escolhido aleatoriamente para comemorar o dia da mulher. Neste dia, do ano de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque entraram em greve ocupando a fábrica para reivindicarem a redução de um horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas. Estas operárias que, nas suas 16 horas, recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram fechadas na fábrica onde, entretanto, foi declarado um incêndio e cerca de 130 mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi decidido que, em homenagem àquelas mulheres, o dia 8 de Março seria lembrado como o "Dia Internacional da Mulher".

Casamento entre gays: pensando em possibilidades

Converso com meus amigos gays e fico indignada com o fato de que, pelo ato do casamento, os heterossexuais têm acesso a benefícios e privilégios sociais básicos que um grande número de casais homossexuais, embora também contribuintes, não têm.
Por que? O que me dá direitos, como esposa, de ter acesso, por exemplo, ao plano de saúde de meu marido? A resposta é simples: meu direito está garantido pelo fato de ter assinado com ele um contrato que oficializa nossa relação. E por que aos gays não é permitida a legalização do casamento para que possam também usufruir deste e de outros benefícios?
Esta é uma questão religiosa? Creio que não, pois a cerimônia na igreja não é exigida para o casamento ser considerado legal. É a cerimônia civil que o torna oficial. Assim, são os tribunais e não as igrejas que devem decidir sobre a legalização do casamento entre gays.
Conservadores argumentam que essa união é incorreta porque o propósito do matrimônio é ter filhos. O próprio nome já diz: “matrimônio” está relacionado à maternidade. Implica em que uma das partes dessa união seja uma mulher, que ela procrie e que cuide dos filhos.
No século XII, na Idade Média, quando a igreja ainda não intervinha no casamento, sendo este um contrato entre senhores feudais como forma de enriquecimento e anexação de terras, a procriação já era considerada muitíssimo importante para selar tal união e garantir a defesa do patrimônio (vejam bem: a palavra é “patrimônio”, o que me faz pensar em poder do pai, sendo os filhos gerados pela mulher para empoderar o homem). Caso a mulher não procriasse, era devolvida à família ou ia para um convento.
Mais tarde, quando a igreja se envolveu na questão, também passou a defender a procriação como expressão máxima do casamento, pois somente com esta finalidade aceitava a prática sexual.
Ou seja, casamento envolve procriação e, portanto, só pode ocorrer entre homem e mulher.
Mas, seguindo este raciocínio, a união entre um homem e uma mulher em que um dos dois ou ambos sejam estéreis, não poderia ser aceita. O casamento entre pessoas em idade pós-menopausa também não teria sentido. Outro fato é que, atualmente, inúmeras mulheres escolhem não ter filhos e casais heterossexuais entram em acordo sobre isso, o que não impede que desfrutem de outros aspectos proporcionados pela união conjugal, como o companheirismo, a cumplicidade e a realização de sonhos em comum.
Esta polêmica envolve ainda o direito de casais homossexuais à adoção de filhos.
Centenas de entidades científicas e sociais endossam o casamento gay e a adoção gay.
Sobre isto, estudos desenvolvidos em Psicologia e áreas afins comprovam que o fato de uma criança ser educada por pessoas homossexuais não interfere de forma negativa na formação de seu caráter ou em sua sexualidade. O acolhimento do lar, os valores morais, a disciplina e os cuidados que toda criança deve receber para que seja pleno seu desenvolvimento físico, mental e psíquico podem ser oferecidos por pais e mães homossexuais, tanto quanto por heteros.
Por fim, religiosos afirmam que o casamento entre duas mulheres ou entre dois homens, pela impossibilidade da procriação e pela expressão diferenciada de sexualidade, não seria uma união “natural”. Mas qual seria o conceito de “natural”?
O ser humano não é natural, se entendemos por natureza uma essência original que nos faria a todos iguais e programados para certos comportamentos. Não temos natureza, temos história! Somos o resultado de uma época, classe social, etnia, religiosidade, relações sociais, emoções, que interagem de forma permanentemente dinâmica, resultando na individualidade e especificidades de cada um de nós.
O desejo sexual não é natural, pois não se constitui apenas de instinto, mas de preferências e identificações. Animais não desejam, apenas estão programados biologicamente para acasalar e procriar.
O amor e a paixão, que levam ao casamento e à formação familiar, não são da ordem do “natural”. Embora tenham sim aspectos biológicos, envolvem cultura e experiências de vida.
Aliás, o casamento não é natural, é uma instituição, um “negócio” criado para atender a necessidades sociais que, em sua origem, nada tinham a ver com amor e desejo.
E por sermos assim, por sermos mais que naturais, somos abertos a todas as possibilidades de expressão, inclusive ao desejo, amor ou casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Mulheres que sorriam


Nesta data oficial de comemoração – Dia Internacional da Mulher – não pretendo discorrer sobre as conquistas, inúmeras e necessárias, que nós mulheres fizemos ao longo da história. Outros textos publicados na mídia farão isso por mim e com mais propriedade.
Claro que sou grata a todas que, de alguma forma, contribuíram para que hoje ocupássemos espaços que há poucos anos não nos eram de direito. Mas gostaria de aproveitar a data para lembrar que algumas mulheres simples e pouco instruídas podem ter importância crucial na formação, durante infância e juventude, daquelas que passam mais tarde a estar na linha de frente das lutas e vitórias em nossa sociedade. Assim foi com muitas de nós. Assim foi comigo.
Convivi, quando criança, com mulheres que sorriam. Lembro-me de uma foto de família: homens, mulheres e crianças. Eles carrancudos, sérios. Somente as mulheres sorrindo. Eram elas as responsáveis pelo cuidado, pelo afeto e pela alegria nos anos de minha infância. Minha avó, por exemplo, forte e acolhedora, era a representante maior da alegria. O sorriso sempre estampado no rosto. Vinham dela o entusiasmo e a vontade de viver que inspiravam a mim e a minhas irmãs, assim como eram dela as respostas que nos indicavam o caminho nos momentos de crise.
As mulheres de minha vida abriram mão de grande parte de seus sonhos para cuidarem de seus homens e filhos. Era assim que tinha que ser naquela época. Casar e ter filhos era o sonho da grande maioria das mulheres na década de 30, quando minha avó se casou aos 16 anos, e ainda era assim na década de 60, quando se casou minha mãe aos 19. O casamento, embora beneficiasse muito mais aos homens do que às mulheres, exigia delas um empenho maior do que deles. Incluía-se aí o abandono dos ideais pessoais e a dedicação total à maternidade, criação dos filhos e vida doméstica. Era a mulher – e ainda hoje é assim em muitos lares – que abria mão de boa parte de seu tempo para gerar, parir, amamentar, trocar fraldas, cuidar, contar histórias, brincar, alimentar, levar à escola, ajudar nos deveres de casa e administrar, mais tarde, as questões afetivas, o namoro, a instrução sexual etc etc... Este foi o papel de minha mãe, presença absoluta dentro de casa, enquanto meu pai provia o sustento do lar.
Mas não digo, com isso, que essas mulheres foram mártires. Assisti, na infância, também a cenas de dominação por parte da ala feminina, talvez o preço que cobravam pelo ato de doação. Meu pai, filho desta avozinha querida que tanto me encantava, mas que era extremamente controladora, depois de ter se casado com minha mãe e ter tido três filhas, que posteriomente lhe deram seis netas (um total de dez mulheres que, ele jura, sempre fizeram dele o que bem entendiam) tentou alertar meu marido sobre a enrascada em que estaria se metendo se juntasse seus trapinhos aos meus, mas não obteve êxito.
Embora fosse machista, conservador, educado para ser o chefe do lar e dar a última palavra, meu pai era minoria em casa e, no final das contas, segundo sua própria versão, sua vontade nunca prevaleceu. Foi assim que desistiu do casamento.
Com o tempo, cada uma de nós assumiu novos papéis como comandantes em seus respectivos lares, inclusive minha mãe, depois de se separar e arranjar novo companheiro.
Assim demos continuidade ao exercício de entrega e doação que aprendemos com as mulheres de nossas vidas. Eu, de minha parte, nunca me esqueci do sorriso: capacidade de sedução e encantamento que elas me ensinaram.

1 de março de 2011

PAIXÃO

"De deseo somos

La vida, sin nombre, sin memoria, estaba sola. Tenía manos, pero no tenía a quién tocar. Tenía boca, pero no tenía con quién hablar. La vida era una, y siendo una era ninguna.
Entonces el deseo disparó su arco. Y la flecha del deseo partió la vida al medio, y la vida fue dos.
Los dos se encontraron y se rieron. Les daba risa verse, y tocar-se también."
Eduardo Galeano

A paixão é o preço que pagamos por sermos desejantes.
Quase todas as pessoas no mundo ocidental desejam apaixonar-se, pois acreditam que somente o amor romântico pode trazer a felicidade. Esta idéia está presente na literatura, músicas, novelas, filmes, propagandas e outras tantas mensagens da mídia.
Apaixonar-se é mágico, nos enche de entusiasmo! É um sentimento agradável.
Mas é ilusão, miragem. Formulamos opiniões sobre outra pessoa que não se baseiam na realidade e sim na necessidade emocional de completude.
Isso acontece porque todos nós precisamos reencontrar aquele estado perfeito de simbiose e satisfação absoluta que experimentamos enquanto bebês, antes do nascimento e logo depois dele durante os cuidados maternos. Mais tarde, a vida em sociedade trata de nos impor seus limites e restrições, os “nãos” constantes, os condicionamentos. E, como uma defesa, ocorrem as idealizações, fantasias e projeções que nos remetem àquele estado original de prazer permanente.
A projeção é um recurso inconsciente que nos permite viver, através do outro, nossas próprias potencialidades. Enaltecemos no outro características que gostaríamos de ter ou que de fato temos guardadas e não sabemos. Em suma, o outro é um espelho onde nos vemos refletidos.
John Money, sexólogo, afirma que todos desenvolvemos um “mapa amoroso”, entre os 5 ou 6 anos de idade, ou até antes, baseados nas relações familiares e experiências sociais. Na adolescência, os mapas tornam-se mais precisos quanto a tipo físico, caráter etc, formando um quadro mental do parceiro idealizado. Ocorre que muitas dessas características são determinadas por aspectos inconscientes de nosso psiquismo e por isso não entendemos quando nos sentimos tão atraídos por “essa pessoa” e não por “aquela”. Ou seja, somos encantados por algum aspecto do outro que satisfaz uma exigência de nosso inconsciente. 
Segundo Helen Fisher, antropóloga e especialista em paixão, as pessoas são mais suscetíveis a se apaixonarem quando estão mais vulneráveis. Crises no casamento, perdas, traições, auto-estima rebaixada são situações de fragilidade emocional propícias ao aparecimento de uma nova paixão. Ela considera que a paixão é como um vício. Altera a química do cérebro, como ocorre no uso de opiáceos ou estimulantes. Estudos científicos apontam que as tomografias do cérebro do indivíduo apaixonado são muito parecidas com as tomografias do viciado em cocaína.
Avassalador o desejo. Mudanças de humor. Melancolia. Euforia. O tempo custa a passar. Os dias são intermináveis, os instantes incontáveis, tal a ansiedade que nos devora por dentro. Calafrios, pupilas dilatadas, boca sem palavras, o cheiro do outro que embriaga, o coração disparado. Distração. Pensamentos que correm em círculos. Obsessão. Sacrificamos tudo e corremos todos os riscos em nome desse sentimento.
Essa excitação temporária, que pode durar apenas uma semana, ou até chegar a três ou quatro anos, fica por conta de um estado sublime, a sensação de finalmente termos encontrado naquela pessoa uma parte de nós que estava faltando e que agora nos é devolvida e nos faz inteiros.
Por isso, quando acaba (e sempre acaba) ficamos vazios. A paixão pode se transformar gradativamente em um amor mais maduro e estável ou pode ficar em seu lugar somente amizade, mas o fato é que quando acaba fica uma sensação de que fomos ludibriados. Perdemos o chão. De repente, não mais nos reconhecemos.
Acordamos, enfim, do sonho de completude que tínhamos projetado em alguém, à medida que a convivência e a intimidade tratam de nos mostrar a realidade. O amor verdadeiro, acreditem, não tem nada de cego!