27 de abril de 2011

Era


Ouço canção de Ana Carolina, uma porrada pra me fazer pensar, neste dia sem sol, dia cinza. E tudo o mais igualmente cinza dentro de mim...

O destino me pregando uma outra peça eu não
queria

Me cercava toda noite com sua flecha e sua guia

Era o tempo me encostando sua pele traiçoeira

Eram noites tão pesadas com nuvens sorrateiras

Era a vida me cortando a carne com seu guiso

Ecoando pelos séculos os sons de alguns gemidos

Eram o meus antepassados dentro dos bacanais

Era o tempo me emprestando aquilo que eu não

devolveria mais

Era um homem nos meus sonhos me currando sem perdão

Eram duas velhas mortas se arrastando pelo chão

Eu soltava os meus cães e o meu peito a soluçar

Abafava os meus gritos, pois não sabia ladrar

Achei que não era eu que fazia a minha história andar

Punha a culpa no destino e quem estivesse a mão para

culpar

E era assim


Hoje em dia não me importo com o que fiz do meu

passado

Quero amigo, sorte, muita gente boa do meu lado

E não rebato se disserem por aí que eu tô

errado

Porque quem se debate está sozinho ou afogado

Eu que não fico no meio, não começo e nem acabo

Eu sou filho do amor, não de Deus nem do diabo

Na ciranda das canções eu me ponho a revesar

Rodando entre as ondas que me puxam em alto

mar

Hoje sei bem quem sou eu que giro a minha vida

circular

Essa roda eu que invento e faço tudo nela se encaixar

É eu sou assim

25 de abril de 2011

TRAVESSIAS

Nos dias em que se comemora a Páscoa, contemplo o devir de novas possibilidades. Recebo a visita de meu pai e reflito sobre os exemplos que dele recebi sobre a persistência e a auto-confiança. Homem forte e corajoso, é capaz de se levantar após uma queda e recomeçar em situações em que outras pessoas desistiriam, pois costuma ver através dos obstáculos suas oportunidades de superação. Com ele aprendi sobre as utopias e seus significados. Entendi o que queria dizer Eduardo Galeano, poeta maravilhoso, quando define que a utopia serve para nos fazer seguir em frente, sobretudo quando ela nos parece cada vez mais distante. Quanto mais caminhamos, mais a utopia se afasta, fugindo de nosso alcance, então mais ainda a desejamos e a perseguimos.

Creio que o sentido mais genuíno da Páscoa é o de libertação. É a travessia entre aquilo que deixamos para trás e o que buscamos conquistar adiante. Como rito de passagem, celebra para os judeus a travessia do Mar Vermelho, mudando um estado de escravidão para a liberdade e o encontro da terra prometida. Para os cristãos, celebra a passagem da morte para a vida, representada na ressurreição de Cristo. Assim também nos traz o sentido de que podemos renascer continuamente, abandonando o que já não nos serve – antigos hábitos, comportamentos, mágoas e outros sentimentos – e fazendo-nos novos. Pois vida é metamorfose, dinâmica de transformações e amadurecimento.
A vida é feita de passagens, de renúncias e perdas que constituem em si mesmas novas possibilidades. Perdemos para ganhar. Do ventre materno ao nascimento, da infância à juventude, da juventude à vida adulta, da vida adulta à terceira idade e desta à morte que, segundo várias crenças, não é o fim, mas o começo de outro sentido de existência. Mudamos continuamente. Nos casamos, tornamo-nos mães e pais, tornamo-nos avós, nos formamos profissionalmente, nos divorciamos, enviuvamos, mudamos para outra cidade, retornamos, enfim as mudanças são parte estrutural da vida humana, atribuindo à sua dinâmica os riscos e recompensas, dores e alegrias, perdas e ganhos da história de cada um.
Pai, o sentido da Páscoa se realiza em nosso encontro, ainda que você não acredite em preceitos religiosos, que seja um cético. O fato é que você sempre acreditou na vida e na capacidade humana de criar. 
Ouvimos boa música, conversamos, como antigamente...
Com você eu sinto o céu aberto. Minhas forças se renovam e sinto passar aquela sensação de abandono que trago no peito. De repente, a vida me chama de novo.

18 de abril de 2011

OS "LOUCOS" QUE PRODUZIMOS

Começo citando Leonardo Boff, em texto postado em seu blog, sobre o massacre na escola de Realengo (RJ). Diz ele: “A vida cura a vida e o amor supera em nós o ódio que mata”.
Já nos acostumamos com o fato de que a vida urbana tem dessas coisas: violência, intolerância, gente enlouquecida, gente com medo, gente que mata. Diante dessa realidade, nosso teólogo mais sábio e querido nos abençoa com essas palavras... a vida cura a vida... Então a vida está enferma? Carece de cura? Interessante pensar que o remédio para nossos males está na mesma substância que os produziu. Como picada de cobra, que só pode ser tratada com soro feito a partir de seu próprio veneno. Se nossa sociedade adoeceu, é exatamente em seu interior – nas relações humanas que ela produz – que podemos encontrar as respostas e soluções para o cotidiano caótico que nos habituamos a viver.
A questão colocada por Boff é a seguinte: somos nós, sociedade bárbara e desequilibrada, quem produz os “loucos” que nos atormentam. Um rapaz que, aos vinte e poucos anos, resolve vingar as agressões que sofreu quando criança no ambiente escolar, matando alunos da mesma escola em que estudava, e depois dá um tiro na própria cabeça só podia estar “louco” – é o que todos nós concluímos. E nos perguntamos: como se produz esse tipo de loucura? Como evitar que pessoas inocentes paguem por isso? De quem é a responsabilidade de deter os comportamentos destrutivos de indivíduos psicologicamente perturbados?
Patologias que podem levar a tragédias como essa, embora tenham origem em fatores relacionados à história pessoal do indivíduo e nas relações familiares, não podem ser analisadas separadamente do contexto social, até mesmo porque atualmente a sociedade globalizada, os meios de comunicação de massa, as redes virtuais e, sobretudo, a escola passaram a exercer o papel de educadores que antes era restrito aos pais. O psiquismo humano é resultado da interação de vários fatores, entre eles os valores apregoados e difundidos no interior da sociedade em que vivemos – em sua cultura, em suas relações sociais, em seus meios de produção, nas suas produções intelectuais, nos seus jogos políticos e nas mensagens veiculadas por seus meios de comunicação de massa. Ou seja, o sistema político-social e econômico como um todo pode produzir pessoas mentalmente sadias, ou pode ser uma máquina de fazer neuroses e psicopatologias. Além disso, pode ainda tratar como normalidade o que comumente seria tratado como patologia na clínica psiquiátrica. Assim, vários comportamentos que podem ser considerados doentios tornaram-se genéricos ou “normais” nas sociedades contemporâneas, como o isolamento, a frieza, a incapacidade de viver relações afetivas, o medo, a desconfiança permanente, a ansiedade, a depressão, a atitude de “descartabilidade” nas relações humanas (no mundo dominado pelo consumo, troca-se de pessoas, como se trocam de objetos, roupas, etc). Nesse contexto, a sensação de opressão é marcante. É também presente a dor da injustiça e das desigualdades. Estigmas, preconceitos e o desrespeito às individualidades, somados à desagregação dos valores familiares, contribuem para o aumento de comportamentos intolerantes e vários tipos de violência, inclusive nas escolas, como o bullying.
Em meio a tudo isso, nem todos conseguem manter a sanidade mental e emocional. Basta voltar aos estudos de Freud e de outros psicanalistas para compreender que os instintos de morte e agressão fazem parte de nossa constituição psíquica. Temos todos dentro de nós o impulso para a vida e, simultaneamente, tendências agressivas e auto-destrutivas.
Porém, é Freud quem também indica que a civilidade, a educação, a arte, as relações afetivas, a ciência e toda forma de criação e produção humanas nos ajudam a controlar tais instintos e aflorar o princípio de vida: o que há de melhor e mais construtivo em cada um de nós. Felizmente, muitos de nós aprendemos, ao longo da formação de nossa consciência e personalidade, a frear nossas tendências destrutivas e a gerar vida.
Por isso, no momento em que reacendem discussões sobre o combate ao tipo de violência que ocorreu no Rio de Janeiro, somos obrigados a admitir que a questão é bem mais complexa. Restrição à venda de armas, mais segurança policial nas escolas, criação de esquemas de atendimento em saúde mental, treinamento de professores para lidarem com a agressividade em sala de aula, enfim, tudo isso não basta. É preciso reconhecer que ajudamos a inventar esse sistema que nos aprisiona e que somente mudanças em suas bases estruturais e nos modos como se dão suas relações humanas poderão nos indicar os caminhos para a paz.